"Noite profunda. Acordo de repente e me apoio num cotovelo. O velho ainda está rezando perto do aquecedor e rezará até romper a manhã; perto de mim Ali está dormindo. Lembro-me de que ele, pouco antes de dormir, ria com os irmãos, conversando sobre o teatro e que eu contemplava, conforme contemplo agora, o seu semblante pueril. Vagarosamente, nesta insônia que me acomete, passo a recordar-me de coisas; as mais recentes, destes últimos dias de festas; as passadas já há um mês. Angustiado, soergo a cabeça e contemplo os meus camaradas, que estão dormindo. Sob a luz fraca da candeia que permanece acesa segundo o regulamento, vejo aqueles rostos lívidos, aqueles catres miseráveis, toda aquela inenarrável miséria, toda aquela abominação inaudita. Reviro-me para enxergar melhor e procuro me convencer de que não é um pesadelo, que o que estou vendo é a realidade. Ouço um gemido; um baque de um braço sobre uma tábua; ruídos pesados de correntes. Alguém vira de lado, encolhe-se e, dormindo, fala alguma coisa. O avô, lá junto do aquecedor, reza por todos os "cristãos verdadeiros", e donde estou ouço a sua jaculatória rítmica, veemente e sincera: "Cristo, nosso Senhor, tem piedade de nós..." Deixando minha cabeça tornar a cair sobre o travesseiro, eu, por minha vez, considero: - Não ficarei aqui eternamente, mas somente por alguns anos." Pág. 176
(Trecho do livro Recordações da Casa dos Mortos, de Fiódor Dostoiévski, Editora Martin Claret, São Paulo - 2006 - Página 176)
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